A vala comum

Chegou. Entornou as chaves na cama e o casaco na cadeira. Desfez o nó da gravata, mergulhou no sofá e murmurou “Estou morto!”… a rotina do escritório, o stress da hora de ponta, a inconfundível voz do chefe a exigir tarefas milagrosas para dias com “apenas” 24 horas…

5 minutos bastaram para que o ruído da televisão o embalasse. Voa até ao outro lado e está quase a pousar quando é subitamente interrompido pelo grito do bebé que chora, enquanto luta com a mãe por causa de uma colher de sopa. “Filhos!” abana a cabeça e vira-se para o outro lado, na esperança de encontrar um pouco de descanso, até despertar com o convite emocionante do costume “P’rá mesa! O jantar está pronto!”.

Semi-acordado, arrasta-se até à cozinha. A batalha mãe-filho prossegue, enquanto ele passa os olhos pelo versículo do dia “Desperta, tu que dormes, e levanta-te de entre os mortos e Cristo te esclarecerá.” Ef 5:14… A voz da criança desvanece. A melodia da esposa evapora. Sem avisar, o coração acelera e o olhar abandona o sono e abraça a preocupação. Entra em acção o auto-control. Aguenta. Obedece. Senta-se e come, depois da habitual ladaínha pré-refeição.

Segue-se o diálogo fútil, o "blá-blá" dos problemas deste, das doenças da outra, do amigo que aconteceu… mas aquela frase emerge entre todos os seus pensamentos. Como uma ordem, a martelar na consciência adormecida. Desperta, tu que dormes… Como o carimbo que repisa vezes sem conta no escritório. Levanta-te de entre os mortos… Como o som constante da saída de cópias da fotocopiadora. Desperta, tu que dormes… Como a buzina irritante e repetitiva do automóvel que queria voar por cima da fila, num engarrafamento. Levanta-te. Desperta. TU!

O silêncio da resposta da consciência envolve o seu pensamento, como se dos comentários mudos de um velório inesperado se tratasse. O sussurrar da dúvida adormece o assunto, embrulha o problema num papel negro e tenta arquivá-lo por alguns instantes.

5 minutos, parte 2. De volta ao descanso do guerreiro. Basta ligar e ver… o filme, a novela. Espera um pouco e já está do lado de lá outra vez. Nessa noite, o sono perde-se no eco infinito da Palavra. Estendido na cama onde repousa em paz a sua vida espiritual. A vala comum, que partilha com tantos outros observadores muribundos de uma mera tradição religiosa…

Mas aquela chamada continua… Levanta-te! Tu, que sonhavas com as grandezas do poder de Deus. Desperta! Tu, que eras apaixonado pelas pessoas que estavam longe de conhecer a vida abundante que Jesus dá. Acorda! Tu, que choravas e oravas por mais intimidade com o teu “ex” melhor Amigo… Adormecido pela tradição, embalado na monotonia. Morto pela religião, assassinado pela nostalgia.

“Por causa disto há entre vós (…) muitos que dormem”
1 Co 11:30

Num sobressalto, o Lázaro do Século XXI ressuscita. Agora, envolvido em lágrimas, pelas ataduras dos seus remorsos, ele ergue-se e sai da vala onde foi sepultado.

Aceitou o desafio. Arrependido, mas determinado, baixou a guarda, levantou a cabeça e pediu “Desperta-me, Deus!

Desperta-me, Deus!

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