Lama no jardim

Um texto dedicado a todos os que sofrem directa ou indirectamente com o caos da Madeira... e a todos os que são apanhados de surpresa pelos desaires da vida.
Como um jardim grandioso brilhava para quem lá vivia e visitava. Uma pérola no Atlântico, conhecida pela sua beleza natural. A festa do fim-de-semana anterior não adivinhava o Entrudo que iria avassalar aquele dia.
Em poucos minutos, o descalabro. Chuva acima do alerta. Torrentes que abalavam tudo o que se lhes aparecia à frente. Escombros embalados sem dó nem piedade por um temporal atroz.
O previsto mau tempo foi um imprevisto pesadelo que se materializou: derrocou esperanças e sonhos de dezenas de pessoas. Investimentos por água abaixo. Economias ruídas. Família desmembradas. Vidas interrompidas. Luto aguardado.
A lama espargida no jardim esconde e ofusca toda a beleza que antes o iluminava. O projecto ambicioso que ocupava as fotografias rasgou-se em mil pedaços e deixou alguns fragmentos limpos, outros irrecicláveis.
No melhor jardim derrama-se a lama mortal. No melhor pano cai a nódoa imprópria. Na vida mais solene e despreocupada, os desaires chegam sem aviso.
O mar de rosas que revela os espinhos escondidos, camuflados pela hipocrisia. A doença que surge sem ser convidada. Um emprego estável que termina abruptamente. Um ser humano que nos trata monstruosamente ao virar da esquina e nos tira a dignidade. A depressão que irrompe sem tréguas, depois de anos de apatia perante factos intragáveis. O companheiro que abandona a família sem razão aparente. O filho que se entrega ao isolamento e depois à morte planeada.
Os contratempos podem bater à porta nos melhores momentos da vida. Nunca lhes damos licença. Eles simplesmente surgem e marcam-nos para o futuro, de alguma forma.
O pânico toma conta de alguns. Outros, desligam-se numa introspecção paralisante. Para outros, os porquês e as questões são adiadas para depois da urgência. É preciso ir à luta. Arregaçar as mangas. Fazer alguma coisa.
O vazio das nossas perdas precisa ser enfrentado, mais cedo ou mais tarde. Olhar de frente, olhos nos olhos, os factos. Tratar deles e tratar de nós. Olhar em frente, para o que fica, para o que resta de nós, dos outros.
Há fenómenos que não podemos controlar, mas podemos decidir o que fazer quando eles acontecem.
Podemos plantar um novo jardim e apreciá-lo. Pelo menos, enquanto não vem a chuva e a lama. Investir em vidas, na nossa e na dos outros, enquanto temos força, e pessoas. Cruzar os braços é morrer antes de tempo, e deixar os outros murchar sem lhes dar um rasgo de alento.
Um texto que partilho para todos os que precisam de cura e recomeços: “Louvem o Senhor! Porque é bom cantar louvores ao nosso Deus! É tão agradável como justo que louvemos o Senhor! Ele está a reconstruir Jerusalém e a fazer regressar os seus exilados. Conforta os que têm o coração em chaga; cura-lhes as feridas. Sabe o número exacto das estrelas, identificando perfeitamente cada uma delas. Por isso o nosso Senhor é grande! O seu poder é absoluto! A sua sabedoria é sem limite!” (Salmo 147:1-5, versão “O Livro”)


Ana Ramalho

in revista Novas de Alegria, Abril 2010

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