O mais importante
Com o coração acelerado, corria
numa angústia dilacerante, procurando lá chegar a todo o custo. Já não era
cedo. O quiosque fechava dali a minutos e, na mão, a nota e o papel “da sorte”
começavam a ensopar-se.
A chuva arrazoava uma enorme
tempestade, enquanto fingia não estar encharcada de ansiedade e expectativa. O
suor misturava-se com as gotas que o temporal lacrimejava e, depois, com a
lágrima teimosa que apareceu ao dar com as comportas fechadas. Não chegou a
tempo... e aquela poderia ser “a” semana em a infelicidade da sua vida seria
salva por um miraculoso jackpot.
Não lhe gabo a sorte, agora num
canto, abrigada pelas estreitas varandas da praça, enquanto espera que tudo se
acalme. Ela vai regressar ao cúmulo da subsistência, na esperança de tentar,
novamente, daqui a dias. Mas não me posso esconder atrás do meu guarda-chuva
religioso, e olhar de lado a sua vida e a sua desesperança disfarçadas de má
sorte, de um talvez que lhe saia aos milhões.
João Calvino disse que “a mente do homem é como um depósito de idolatria e superstição; de modo que, se o homem confiar na sua própria mente, é certo que ele abandonará a Deus e inventará um ídolo, segundo a sua própria razão.”
Se
a figura tempestuosa me é muito semelhante é nesta tendência para me apaixonar
pelos ídolos que crio ou que adoto, sem me dar conta. Sou idólatra,
invariavelmente, quando o meu coração não está abrigado inteiramente debaixo da
soberania e amor de Deus. Quando deixo que a minha independência, até com uma
recatada aparência de espiritualidade, me leve onde o meu coração enganoso, ou
o enganador, quer. Quando vou a Deus como um simples facilitador dos meus
desejos. Quando enganosamente procuro, naquela pessoa ou naquele lugar, naquele
prémio ou naquela posição, a satisfação que só Deus pode dar.
A idolatria começa no coração. É
um apego exagerado a algo, de tal forma que o objeto da nossa veneração nos
domina, - e isso vê-se nas nossas ações e palavras. E isto ainda é mais grave e
mais perigoso quando, conscientes da Palavra de Deus, nos deixamos controlar
pela subtileza e o fascínio de algo ou alguém que não seja o nosso Pai e
Criador.
Pensemos na famosa conversa de
Jesus com a mulher de Samaria. A certa altura ela reconhece “então: ‘Senhor, estou a ver que és profeta! Os nossos antepassados
samaritanos adoraram a Deus neste monte. Vocês dizem que só em Jerusalém é que
se deve adorar a Deus’. ‘Acredita no que te digo, mulher!’, declarou Jesus,
“Chegou a hora em que não é neste monte nem em Jerusalém que hão de adorar o
Pai. Os samaritanos adoram a Deus sem o conhecerem bem; nós os judeus, sabemos
o que adoramos porque a salvação vem dos judeus. Porém, está a chegar a hora —
e é agora mesmo — em que aquele que adora o Pai o há de adorar no Espírito e em
verdade. São estes os adoradores que o Pai procura. Deus é Espírito e os que o
adoram devem fazê-lo no Espírito e em verdade’." (João 4:19-24 BPT)
O alvo de Jesus não é dar razão
aos judeus ou aos samaritanos, como a mulher pedia, já que este era um assunto
que os dividia. É desmistificar o que é a verdadeira adoração, trazendo
esperança àquela mulher desprezada pelos seus conterrâneos, e odiada pelos seus
vizinhos. Jesus explica que não há um lugar especial para adorar, mas importa,
isso sim, a intenção e o alvo da nossa adoração.
Como nos tempos bíblicos, ainda
hoje tendemos a sacralizar alguns lugares em oposição a outros, como se a
bênção de Deus dependesse da geografia. Tendemos a pensar que a pessoa “A” ou
“B” é que nos vai salvar da vida complicada que temos. Depositamos a nossa “fé”
num boletim com números, esperando que aquilo que a Verba nos dá nos torne
realmente felizes... e até pedimos uma “ajudinha” ao Verbo*! Mendigamos
momentos de alegria e felicidade, agarrados às coisas... e não compreendemos
como isso nos tira o foco da verdadeira felicidade – uma vida de inteira
devoção ao Deus que merece realmente a nossa adoração.
O nosso coração fica desfocado
daquilo que realmente é importante – Deus “quer
que todos os homens se salvem, e venham ao conhecimento da verdade; Porque há
um só Deus, e um só Mediador entre Deus e os homens, Jesus Cristo, homem. O
qual se deu a si mesmo em preço de redenção por todos, para servir de
testemunho a seu tempo.” (1 Timóteo 2:4-6, BPT)
Ao contrário da idolatria, que
escraviza, a adoração verdadeira ao Deus verdadeiro, liberta. Este é o tempo de
amar a Deus acima de todas as coisas, tempo de derrubar os ídolos que tiram o
lugar que só Ele merece – porque Ele é O mais importante.
Ana Ramalho Rosa
* Verbo, no Evangelho segundo
João, refere-se a Jesus.
in revista Novas de Alegria, novembro 2015. Texto escrito conforme o novo acordo ortográfico
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