O trono e os pedestais
Quem é o marido que gosta de ser
traído? Quem é a mãe que sonha que os seus filhos a mal tratem? Hoje há gostos
para tudo, mas...
A
traição é dura de roer, seja de um cônjuge, de um amigo, de um familiar próximo.
Custa muito sentir na pele que fomos trocados, mesmo que venham os pedidos de
desculpa. Claro que o perdão é a moeda de troca que o cristão, seguindo o seu
Mestre, deve dar, sabendo sempre salvaguardar a sua sanidade física e emocional
quanto ao agressor/traidor. Um perdão que Ele nos deu. Um perdão que Ele nos
capacita a dar. Um perdão que nos liberta para vivermos segundo a identidade
que temos em Cristo, como filhos amados do Pai.
Mas
a infidelidade pode ser muito mais do que uma traição ao “vizinho do lado”.
Podemos trocar Deus, também, por outro(s) objetos ou pessoas da nossa devoção.
Já nos tempos do Antigo Testamento, esta verdade surge e, infelizmente, é atual
e presente nesta nossa natureza corrompida. Deus, através dos Seus profetas,
alertou o Seu povo para o modo como O estava a trair, adorando os deuses, os
ídolos dos outros povos.
Desde
o princípio da história de Deus com o povo hebreu tinha implícito um pacto, um
acordo de fidelidade comum. Deus, sempre fiel, cumpriu a Sua parte, mas o povo,
constantemente, traia o acordo que tinha com Ele. Embora a Sua misericórdia e
paciência fossem longas, eles acabavam por não se arrepender (ou mostrar que o
arrependimento era fictício), sofrendo as consequências.
Para
nós, que tanto falamos de tolerância, pode parecer cruel, mas qual de nós está
disposto a ser traído, sem qualquer sinal de verdadeiro arrependimento da outra
parte, décadas seguidas, e não reagir? Muitas vezes julgamos Deus, sem pensar!
A
verdade é que, ainda hoje, temos a tentação de criar os nossos pedestais e ali
colocar os alvos da nossa adoração, seja a carreira, a família, o dinheiro, a personalidade
“A” ou “B”, ou mesmos nós próprios. Podemos tirar Deus do Seu trono e
dedicarmo-nos aos deuses que colecionámos e dos quais nos tornámos cúmplices e
dependentes, na nossa paradoxal tendência para sermos independentes. Virámos as
costas a Deus, traindo-O e dedicámos a nossa vida aos ídolos da nossa
conveniência, seduzidos pelo falso senso de segurança que eles nos dão.
“Será que isto tem a ver comigo?”, perguntamos. Se calhar nunca pensámos nisso.
Passámos a vida toda a seguir o nosso caminho, sem nos preocupar-nos com Deus,
se Ele existe e/ou se Ele se importa connosco. Ou então, mesmo conhecendo
muitas coisas acerca de Deus, achámos que isso não tem nada a ver com a nossa
vida - vivemos como se Ele não existisse.
Ao
palmilhar o chão desta terra, Jesus trouxe uma mensagem de esperança para uma
nova vida, de submissão amorosa ao Pai, que demonstrou com o Seu exemplo e com
as Suas palavras. E essa submissão não começa com uma imposição exterior, que
até pode ser teatralizada com uma obediência aparente. Antes, Ele anunciou a
necessidade de reconhecimento da nossa ruína, do erro que cometemos ao nos
entregarmos aos nossos pedestais, e uma reviravolta na vida, de dentro para
fora, resultando na mudança de carácter que só Ele pode operar - o princípio do
novo caminho de submissão, humildade e amor com o Pai.
Com
Cristo, regressa ao trono quem de direito. O nosso primeiro amor volta-se para
o Pai, percebendo o Seu imenso amor ao enviar o Seu filho para pagar pela nossa
traição atroz, pela nossa idolatria ao pecado, pelo egocentrismo caótico que
nos atirou para uma “salganhada” de pequenos amores às escondidas, tão patentes
nas nossas escolhas e nas nossas palavras.
Paulo
sumariza, ao discursar no Areópago: “Não
devemos imaginar Deus como um ídolo que os homens fizeram de ouro, ou de prata,
ou de pedra, pela sua arte e imaginação. Deus tem tolerado a ignorância do homem acerca destas
coisas, mas agora ordena a todos, e em toda a parte, que se arrependam e o
adorem só a ele. Pois marcou um dia para julgar o mundo com justiça através do
Homem que designou para isso. E deu a todos uma sólida razão para crerem nele,
ressuscitando-o da morte.” (Atos 17:29-31, OL).
Ana Ramalho Rosa
in
revista Novas de Alegria, abril 2014
Texto escrito
conforme o novo acordo ortográfico
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