Celebrar a morte?

 “França é o primeiro país do mundo a inscrever o direito ao aborto na Constituição. Quase 50 anos depois da despenalização da interrupção voluntária da gravidez, França deu um passo mais. Agora, o combate é pela consagração deste direito na Carta dos Direitos Fundamentais da UE.”1

Se os nossos avós estivessem vivos ficariam chocados com o estado deste mundo. Nas últimas sete décadas, a sociedade ocidental foi-se transformando no império do individualismo. Muitos dos princípios que eram considerados naturais, normais e saudáveis, que durante séculos serviram para pautar a sociedade chamada estão assentes na matriz ética, moral e comunitária judaico-cristã. Infelizmente existiam (e ainda existem em algumas realidades, lamentavelmente!) certas práticas erradas como a escravatura, racismo, xenofobia, violência doméstica, tratamento discriminatório e outros que a Bíblia claramente condena, e que nunca deveriam ter existido. Não sendo tudo perfeito, porque não o foi, uma coisa é certa: a vida humana era sagrada. Digo “era” porque o conceito de “vida humana” de há 70 anos não é o mesmo que hoje a sociedade tem e defende - foi sendo adulterado e pervertido, assim como outros conceitos (casamento, identidade, sexo, etc).

 

Primeiro, colocou-se Deus de lado e ficou-se apenas com os Seus princípios, em que se baseavam as leis. Depois, foram-se removendo esses princípios, até que chegámos ao dia em que se materializou politicamente a tentativa de inverter o paradigma que Cristo instituiu com a Sua morte e ressurreição: a vida triunfa sobre a morte. Vemos uma nação congratular-se por consagrar a morte de um ser humano como um direito. Quando celebramos a morte em vez da vida, algo está extremamente errado connosco. Antes de ser aprovada a inscrição do direito ao aborto na constituição do país, o Conselho Nacional dos Evangélicos de França (CNEF) 2 emitiu um comunicado no qual explica o contexto.

 

“A 15 de janeiro de 1975, a Lei Veil consagrou a Interrupção Voluntária da Gravidez como último recurso em situações sem saída. A exceção deveria ser o princípio (…). Num discurso solene, a Sra. Simone Veil alertou para a importância de não se perder de vista o ‘carácter excecional’ deste recurso, a fim de evitar que a sociedade ‘pareça encorajá-lo’ e se comprometa, na medida do possível, a dissuadir a sua prática. Tranquilizadora, a ministra concluiu o seu discurso afirmando que era nosso dever para com as gerações futuras ‘preservar o valor supremo da vida’.”

 

Uma das preocupações deste órgão coletivo de representação dos evangélicos em França é “(…) que o direito à objeção de consciência do pessoal médico seja posto em causa. Receia igualmente que a liberdade de expressão, bem como a liberdade de imprensa, sejam postas em causa.” No mesmo comunicado o CNEF coloca-se “ao lado das mulheres em situação de vulnerabilidade, e particularmente conscientes, como a senhora Simone Veil, de que o aborto é sempre ‘um fracasso quando não é um drama’.” E pede “(…)  ao governo [francês] que assegure às mulheres que o desejem a liberdade e os meios” de ficar com os seus filhos ou entregá-los para adoção, sublinhando ainda que “para estas mulheres e para aquelas que fazem uma escolha diferente, as nossas comunidades querem continuar a ser lugares acolhedores que mostram o amor, a graça e a vida que o Evangelho de Jesus Cristo traz.”

 

A sociedade pode mudar ao nosso gosto ou contra ele, mas há Alguém que nunca muda, e cujos princípios continuam os mesmos desde o início – Deus. O homem e a mulher foram criados à imagem, conforme a semelhança de Deus (Génesis 1:27), logo a vida humana não é comparável à vida de qualquer outro ser. O “não matarás” dos famosos e basilares 10 Mandamentos inclui não tirar a vida a um inocente, mesmo que essa vida venha mudar os nossos planos. Certa vez, Samuel R. Pinheiro escreveu “Muitos ou poucos, legais ou ilegais, os abortos são sempre uma ofensa ao Criador e um atentado à vida e à mãe.”3  

 

O espaço é limitado para falar das questões éticas onde a Bíblia é tão completa e essencial na construção da moralidade social. É certo que quanto à vida eterna, só Jesus pode dar salvação e restauração, mas enquanto estamos neste mundo precisamos, à semelhança do que a Bíblia mostra (se a estudarmos como um todo e não procurando justificações parciais, a gosto), valorizar a vida, da sua conceção até à morte natural (Êxodo 20:13; 21:22-23; Mateus 19:18; Marcos 10:19; Lucas 18:20; Romanos 13:9; Tiago 2:11), e as condições dignas para que possamos viver e não apenas existir (Deuteronómio 10:18, 24:17, 27:19; Atos 2:42-47; Gálatas 6:10; Tiago 1:27). São dois lados da mesma moeda e não opostos. E o que cola estes dois lados aparentemente “inimigos” (neste mundo tão polarizado)? O amor! “Deus é amor e aquele que vive em amor permanece em Deus e Deus permanece nele.” (1 João 4:16b, OL) “Porque afinal toda a Lei se resume num só mandamento: ‘Ama o teu próximo como a ti mesmo’.” (Gálatas 5:14, OL)

 

Ana R. Rosa


 

 

1 Lorena, S. (2024, março, 04). França é o primeiro país do mundo a inscrever o direito ao aborto na Constituição. Público. https://www.publico.pt/2024/03/04/mundo/noticia/franca-pais-mundo-inscrever-direito-aborto-constituicao-2082508; 2 Organisme CONSEIL NATIONAL DES ÉVANGÉLIQUES DE FRANCE – CNEF (2024, março, 01). Constitutionnalisation de l'IVG, CONSEIL NATIONAL DES ÉVANGÉLIQUES DE FRANCE. https://www.lecnef.org/articles/143042-constitutionnalisation-de-l-ivg; 3 Pinheiro, S. (2011, janeiro, 13). Há 53 abortos legais todos os dias em Portugal, Samuel Pinheiro, https://samuelpinheiro.webnode.com.pt/news/ha-53-abortos-legais-todos-os-dias-em-portugal/


in revista Novas de Alegria, maio 2024; 

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