Lacrimosa
Ouvir o
Requiem de Mozart, sobretudo a Lacrimosa, é um exercício de introspecção e
reconhecimento do ser humano.
O andamento é pesaroso, mas ao mesmo tempo angelical. Ao soar dos acordes, as vozes elevam-se anunciando o dia de um julgamento final e vindouro, no qual toda a cinza se levantará e todo o Homem será julgado.
O andamento é pesaroso, mas ao mesmo tempo angelical. Ao soar dos acordes, as vozes elevam-se anunciando o dia de um julgamento final e vindouro, no qual toda a cinza se levantará e todo o Homem será julgado.
Sente-se
o peso do pecado, que arrasta a alma para o fundo do abismo, qual Jonas
engolido por um peixe de proporções enormes. A consternação de um Manassés
humilhado e dorido, a tristeza de um Pedro acabado de negar conhecer Cristo, o
choro de Jesus pela morte de Lázaro. Todas estas cenas seriam adornadas em belo
efeito pela obra de Mozart, a qual nos transporta para um local onde olhamos
para dentro de um abismo demoradamente. O abismo que nos contempla a nós em
retorno, tal como Nietzsche fez questão de afirmar. Um abismo em que somos
confrontados com a realidade do Inferno de Sartre: a dolorosa interacção com o
próximo, quando não queremos essa interacção.
Deixar-mo-nos
abraçar pela Lacrimosa é um acto de contrição, é reconhecer a necessidade da
misericórdia divina, pois mesmo redimidos continuamos a sofrer com a
degeneração que o pecado provoca na Criação. Lutero diria que somos simul iustus et pecator, simultaneamente
justos (pelo sangue de Cristo) e pecadores (pela nossa tendência em ceder à
vontade da carne, devido ao que Agostinho chamou pecado original). Mesmo
redimidos, somos chamados a reconhecer as nossas falhas, apelando a Deus que o
Seu amor, clamando a Cristo por piedade e por descanso eterno nos Seus braços. Um
descanso que não atingimos durante o primeiro trajecto da nossa eternidade. Um
descanso que não é produzido pela carne, mas que vem pelo Espírito.
Aquele
dia de pranto e ranger de dentes, do qual todo o ser humano deveria procurar
afastar-se, é tratado hoje com desdém e em tom jocoso. Fábula, mito, fantasia,
dirão muitos. Não nos deixemos enganar… Não tentemos a Deus na nossa descrença,
quando temos ouvido as vozes da Igreja por cerca de dois mil anos. O sangue dos
mártires rega a árvore com muitos ramos que é a Igreja, fá-la dar frutos
visíveis de fidelidade e oriundos de arrependimento. Oiçamos o que Deus nos
fala através da cultura e do dom da música… O Requiem orquestrado por Mozart é
uma obra profética para o homem de hoje. Um reconhecimento do direito divino a
julgar toda a criatura, de fazer um encontro de contas com todo e qualquer um
de nós. Ao mesmo tempo, um apelo sincero e vindo de um publicano que reconhece
perante Deus que não é nada e que faz a chamada oração a Jesus. Esse misto da
confissão do cego de Jericó com o clamor do publicano da parábola de Cristo.
Todo o
Requiem termina com um apelo. Que o Senhor faça brilhar a sua luz perpétua,
inesgotável, inapagável brilhar sobre aqueles que foram resgatados das
mandíbulas devoradoras do Inferno, da ansiedade causada por um afastamento de
Deus e da pestilência do pecado.
Que o
Senhor garanta a todos os seus santos descanso eterno.
Gozo inefável.
Gozo inefável.
Paz
interminável.
Para
que se finde o Requiem, mas se inicie o Allegro.
Ricardo Rosa
Ricardo Rosa
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