O melhor Natal
Aconchegada nos cobertores, naquele sábado frio, sozinha, pensava nos
dias contrastantes que tivera, não tanto pelo clima em si mas pelos afetos,
pelo calor humano que a proximidade se desdobrava em lhe proporcionar.
Pelo aspeto, pouco daríamos por
ela, ou teríamos a aparente nobre atitude de pôr a moeda escura na sua mão
suja, que moribunda se oferecia em busca de ajuda, num gesto descartável que
imuniza a consciência. Debaixo daquele aqueduto, encostada num canto tão
sombrio como os seus dias, resumia-se à companhia de uma garrafa meio cheia,
tão vazia de esperança que estava.
Depois de alguns dias onde toda a gente a regava de generosidade sazonal e alguns sorrisos, voltava à mesma secura, à lengalenga de sempre, à mesmice de quem, acionada pelo trato incompreensível que culminou num despedimento a chegar aos 50 sem esperanças nem vagas concretas de solução, se desgovernou por completo, ao ponto de sair de casa, de deixar a família, de se entregar àquela companhia nefasta e silenciosamente dominadora, porque não podia mais.
Primeiro foram uma cervejas,
depois uns pacotes de vinho, agora já nada era suficiente. Procurava junto ao
lixo garrafas com restos de bebidas mais fortes... e voltava a pedir, a arrumar
carros, a ir para as filas da cantina social do bairro onde pernoitava,
enquanto estava sóbria. E, depois saía dali para procurar mais uma garrafa.
Ninguém dos seus familiares e
amigos sabia onde ela estava. Nem ela mesma tinha consciência do fundo a que
tinha chegado. Ali estava, com as mãos fracas e secas de tristeza, amargura e
desespero. Com o corpo entregue ao mundo, a desfazer-se de dentro para fora,
como a alma, que gritava no silêncio daquele telheiro de cimento em que
sobrevivia.
Levantou-se, meio trémula, e foi
pela tardinha de sábado a dentro, à procura do mesmo de sempre. Caminhava
lentamente entre a chuva feroz até ao largo onde por aquela hora vinham as
carrinhas com uma sopa quente e um pouco de pão. Mas as suas forças perderam-se
pelo meio do passeio esburacado e caiu. Ficou ali, prostrada, encharcada, com
dores no corpo todo e o lábio ensanguentado.
Nem sabe como, mas acordou com o
aroma de café acabado de fazer. A cama macia não a deixava sair. Aparentemente
do nada, alguém lhe trouxe café e torradas e colocou na mesa de cabeceira, sem
dizer palavra. Viu um vulto feminino desaparecer como chegou. Comeu, adormeceu
e assim se ficou. No dia seguinte, depois de um banho quente, a alma caridosa
que lhe dera guarida apareceu com um sorriso nos lábios e desejou um bom dia.
Sem mais demoras, apresentou-se e contou-lhe como a tinha trazido até ali. “Vinha com o meu marido da casa do meu filho
onde passámos o Natal, e vi-a caída à beira da estrada aqui perto, chovia que
se fartava. Quando a colocámos no carro para levá-la a um hospital, logo vimos
quem era, e decidimos trazê-la para nossa casa...” e mostrou um papel meio
amachucado com uma foto que reconhecia, de se ver ao espelho, e a seguinte
mensagem: “Procura-se Custódia Gameiro,
uma mãe e esposa muito querida que desapareceu no dia 22 de setembro de 2009.
Se alguém conhecer o seu paradeiro, contacte o 959 550 905”. Enquanto lia a
descrição com alguma dificuldade pela escalada do tempo e tentava processar
tudo o que estava a acontecer, a campainha suou. Do fundo da casa começaram a
ouvir-se vozes que se aproximavam. Entrou o homem que tinha perdido a sua
princesa há seis anos atrás. Quando viu Custódia, sem olhar para mais nada,
abraçou-a. Os dois choraram pela alegria de um reencontro tão inesperado. As
palavras da mulher agora encontrada eram simples, sinceras e oportunas: “Perdoa-me!”
De volta a casa, Custódia não
queria acreditar. Parecia um sonho. Quanto tempo perdido para recuperar...
Aquele, sim, era o melhor Natal que poderia desejar.
“Todos os cobradores de
impostos e outros pecadores se chegavam a Jesus para o ouvir. Por isso,
os fariseus e os doutores da lei o criticavam: ‘Este recebe
pecadores e come com eles.’ Jesus apresentou-lhes
uma parábola: ‘Suponham que algum de vós tem cem ovelhas e perde uma
delas. Não deixará logo as noventa e nove no deserto, para ir à procura da
ovelha perdida até a encontrar? Quando a encontra, põe-na aos ombros todo
satisfeito e, ao chegar a casa, diz aos amigos e vizinhos: ‘Alegrem-se
comigo porque já encontrei a minha ovelha que andava perdida.’ Da mesma
maneira, digo-vos que haverá mais alegria no Céu por um pecador que se
arrepende do que por noventa e nove justos que não precisam de
se arrepender.” (Lucas 15:1-7, BPT)
Ana Ramalho Rosa
in revista Novas de Alegria, dezembro 2015
Texto escrito conforme o novo acordo ortográfico
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