Oração do outro mundo

Parece que estou noutro planeta, Pai. Parece que entrei num túnel e aterrei no argumento de um filme negro de tristeza, mórbido de angústia, despido de cor. Nos meandros da realidade para a qual desperto, tenho a sensação de ressaca da paz e tranquilidade, do estado de graça de outrora, em vez da desgraça de decisões desgarradas, de acusações eloquentes, mas cegas, de neurose de meia-idade antecipada antes do quarto de século.

Dói-me o coração. Imagino como dói o Teu. Tu sabes tudo. Tu conheces mais do que vejo e reconheces aquilo que escondem os silêncios das despedidas mudas, das fugas de raspão, das falsas seguranças que enganam os que andam aos caídos.

Queria desaparecer agora. Queria deixar este cenário apocalíptico de sorrisos de uma felicidade herética, despida dos Teus valores, despida de Ti, uma espécie de imitação barata da alegria que dás, apenas Tu, mais nada. Alguns corações resgatados pelo sorriso da paixão fácil, da espera desprezada, do controlo empírico, imaginando que isso é a verdadeira felicidade, mas não conseguimos tê-la sem Ti. Alguns sonhos rasgados, pela independência fugaz, na superficialidade daquilo que de facto nos mergulha na agonia.

Queria passar esta página, mas não consigo. Este filme persegue-me. põe-me no cenário diário do punhal trancado nas Tuas costas, e do sangrar das minhas lágrimas noite adentro. É muito duro ver um filho morre-nos no leito da enfermidade, mas não é fácil ver uma filha morrer-nos no desvio tortuoso da vontade. Demasiado penoso ver um cego atirar-se de cabeça para a rua pensando conhecer o caminho, sem GPS, sem guia, enganando-se sozinho. O que posso fazer neste argumento que não escolhi? Ficar à espera, como sempre... à espera do regresso voluntário de todos os vivos-mortos que escolheram abandonar-Te como encenador.

Sei que permites, mas não desejas os nossos erros estúpidos desde a raiz, as nossas decisões balofas de sentido. Sei que não posso fazer nada mais, mas não consegui ficar calada. Tinha de dizer-Te e pedir-Te: ajuda-me a ser-Te fiel dia-a-dia. Ajuda-me a ver cada pessoa como Tu vês. Ajuda-me a falar como falarias... e a estar calada quando é preciso. Agradeço-Te porque me susténs pela Tua graça e porque me ajudas a decidir dizer não à desgraça. Que os vales por que passar e as tempestades que atravessar sejam pela Tua direção e não pela minha decisão tacanha. Assim seja.

“Tal como dizem as Escrituras: ‘Não há ninguém que seja justo, absolutamente ninguém!’ (…) todos pecaram, tendo perdido o direito de acesso à glória de Deus. E pela sua graça, que não merecemos, nos declara justos, pela obra redentora de Jesus Cristo, sem nada pagarmos para dela beneficiarmos.” (Romanos 3:10, 23-24, OL)

“Se algum de vocês se tiver desviado da verdade e outro o ajudar a voltar, irmãos, lembrem-se disto: aquele que ajuda qualquer pecador a deixar o seu erro salvará essa alma da morte e contribuirá para o perdão de muitos pecados.” (Tiago 5:19-20, OL)

Ana R. Rosa

in Novas de Alegria, novembro 2022

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