É urgente! De volta ao estudo bíblico sistemático

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Faz agora 25 anos que iniciei a minha colaboração na Escola Dominical como professora de adolescentes. Embora o meu maior foco ao longo dos anos tenham sido os ministérios juvenis, por via das circunstâncias, também tenho servido na área infantil, quer a ensinar, quer a liderar equipas. Neste âmbito, em 2008 escrevi um texto para a Novas de Alegria acerca da Escola Dominical e do seu potencial tantas vezes esquecido ou negligenciado – e o tema é ainda mais relevante nos dias de hoje. O ministério One Hope realizou um inquérito a nível global e os resultados em Portugal (que temos apresentado ao longo destas páginas centrais) levam-me a pensar na urgência de falarmos deste tema. Nas próximas linhas, revisito a temática, tendo em conta princípios e necessidades para a atualidade.

Foi propositademente que não usei o termo Escola Dominical no título... embora iremos, claro, falar dela. “Escola Dominical: acordar o gigante adormecido” foi o título de uma revista Enrichement Journal1 em 2002. O próprio título faz-nos pensar... e muito. Um gigante pode ser um “peso morto” difícil (ou impossível) de mover quando está a dormir. Pode ser um perigo iminente se toda a sua força estiver descontrolada ou focada nos objetivos errados. Simultaneamente, quando posto em ação para alvos concretos, a sua dimensão promove desenvolvimento e crescimento.

Será que a Escola Dominical está ultrapassada? E que idades podem estar incluídas? Quais os melhores métodos e estruturas? O que fazer se ela está a “morrer”? Há mais potencial no ensino sistemático a Palavra, dos 0 aos 100 anos, do que imaginamos – seja com o nome Escola Dominical, seja com outro nome. A História tem uma palavra a dizer neste aspeto.

 

Começos

A Escola Dominical inicia-se em 1780, na Inglaterra, em Gloucester. O seu fundador foi Robert Raikes, um jornalista dono de um pequeno jornal (The Gloucester Journal). O que moveu Raikes a investir neste projeto, por sua conta e risco, foi a preocupação pela condição das crianças, que trabalhavam seis dias por semana e dez horas por dia nas fábricas, moinhos e minas. Contra a maré da liderança religiosa da época, concebeu uma escola gratuita na qual as crianças pudessem aprender não só matérias académicas, como também acerca de higiene, boas maneiras e religião. Como a Bíblia era o livro ao alcance da maioria das famílias, tornou-se no único manual nas manhãs de domingo. A 3 de novembro de 1783, após três anos de atividades, avaliação e oração, Robert Raikes divulgou os seus primeiros resultados daquele projeto. Nesta data é, por isso, comemorado o dia da fundação da Escola Dominical. Em 1784 o movimento já contava com 250 mil matriculados.

 

O POTENCIAL DA ESTRUTURA


E
mbora a expressão “Escola Dominical” não surja na Palavra de Deus, muitos dos peritos em Educação Cristã apontam o sistema de ensino exposto no capítulo 8 de Neemias como uma base estrutural para a Escola Dominical. Esdras era o superintendente (v.2), o manual em as Escrituras (v.3) e os alunos eram homens, mulheres e crianças (v3; 12:43). Além disso, existiam treze auxiliares de ensino - professores (v.4;7;8) – que não apenas liam, mas explicavam o que Deus queria comunicar ao Seu povo. “E leram o livro, na Lei de Deus, e declarando e explicando o sentido, faziam que, lendo, se entendesse.” (Neemias 8:8).

Outro dos muitos exemplos que poderíamos usar é o aspeto didáctico do ensino de Cristo. É brilhante como Ele comunicava com cada pessoa de acordo com aquilo que era conhecido para ela. Jesus falava de igual para igual. Não queria demonstrar a Sua oratória ou eloquência, mas atingir as pessoas com a Sua mensagem.

“Uma das maiores forças para o rápido crescimento da Igreja em dois terços do mundo? É o ministério em comunidade, uma obrigação de todos os crentes e uma alegria para elas. A Escola Dominical tem essa virtude...”2 .

A primeira coisa que dá à Escola Dominical o seu potencial é a estrutura e metodologia de ensino. Aquilo que hoje as empresas chamam “nichos de mercado”, ou seja, grupos de pessoas com características muito específicas, já a Escola Dominical descobriu há muito tempo! O enfoque na faixa etária particular, articulado com o conhecimento pessoal dos alunos, permite estabelecer estratégias de ensino concretas que irão produzir mais e melhor fruto. Reparem que não se trata de entreter crianças ou jovens, mas de ensinar as várias faixas etárias.

 

PRINCÍPIO 1
Não pode faltar o estudo sistemático da Palavra de Deus, de acordo com as diferentes faixas etárias.

 

O POTENCIAL DAs MOTIVAÇÕES

Outro facto interessante é pensarmos nas motivações de Raikes. Ele teve compaixão e demonstrou-o pela sua ação consequente. Mais ainda, não se tratou de um evento momentâneo, mas de algo contínuo, que revelou o sentido de compromisso do jornalista de Gloucester. Sejamos pais, professores ou líderes, a nossa motivação para com este ministério é muito importante. Se o estamos a fazer por rotina, obrigação, para evidência pessoal ou porque “não havia outra coisa na igreja para fazer”, sem compreender que aquilo que dizemos, fazemos e somos está a moldar o caráter dos nossos alunos, podemos falhar o alvo.

 

PRINCÍPIO 2
É importante ter compaixão. Pensar que o que estamos a fazer tem a ver com vidas, transformadas pela Palavra de Deus, através da qual o Espírito Santo opera.

 

O POTENCIAL DA CONTEXTUALIZAÇÃO

O objetivo de Raikes não era financeiro, mas humano. Ele queria que a vida daquelas crianças fosse melhor. Para isso, não ficou preso aos métodos convencionais da época, mas revolucionou o modo de ensinar – tanto a Palavra de Deus como as outras matérias.

Quando nos tornamos “escravos” de métodos ou formatos, perdemos a noção do propósito da Escola Dominical. Importa sermos bíblicos a 100% mas também contextualizados, para evangelizar, formar e preparar para o serviço cristão as crianças, jovens e adultos. Ou seja, comunicar e apresentar o Evangelho de um modo compreensível, de acordo com a idade, etc. Mudar por mudar, mudar constantemente, pode levar também a uma insegurança e desconforto permanentes. Mas, às vezes, preferimos “morrer” a mudar... e esquecemos que connosco “morre” uma nova geração. Não precisamos temer a contextualização, mas a diluição da mensagem.

A Pandemia obrigou-nos a reagir e adaptar... O nosso Departamento Infantil Nacional está de parabéns pelo trabalho feito a criar planificações de lições para vídeo-chamadas. E muitas igrejas puseram mãos à obra. A verdade é que as coisas nunca mais serão como dantes e que a existência de modelos híbridos é muito provável de vir a ser o normal no futuro..., no entanto, não podemos basear a nossa estratégia em “reações”. Precisamos ser preventivos, orando e trabalhando. Precisamos fazer uma avaliação realista, verificando se estarmos realmente a alcançar, discipular e preparar para o serviço todos, de todas as idades. Depois, apontar os alvos que queremos atingir e, finalmente, planificar e avançar.

 

PRINCÍPIO 3 
Precisamos adaptar-nos e contextualizar-nos, sem perder os dois princípios de que falámos antes.

 

PROJETO DE COMPROMISSO BÍBLICO

O Projeto de Compromisso Bíblico foi criado em 2017 pelo Conselho Geral das Assembleias de Deus nos EUA através de uma rede de visionários - pastores e profissionais, líderes de ministério e voluntários de pequenos grupos, guinistas e editores de vídeo - cujo objetivo era ver um mundo cada vez mais comprometido com a Bíblia. Dois anos depois, encomendaram um estudo ao conhecido Barna Group, cujo objetivo era medir o panorama atual da literacia bíblica e do compromisso bíblico entre os cristãos, mais especificamente, a denominação das Assembleias de Deus e identificar um caminho para um maior conhecimento e aplicação prática da Palavra. O objetivo era inspirar pastores e líderes da igreja a sentir a urgência de que a pregação por si só pode não ser suficiente para que as pessoas vivam comprometidas com a Palavra.

Sem sermos exaustivos, o estudo (disponível em bibleengagementproject.com/barna mediante registo) demonstra que quanto maior é o compromisso e envolvimento com a Bíblia maior é a probabilidade de se ver Bíblia como a Palavra de Deus (e não como apenas o registo de alguns princípios divinos, ou o registo de histórias e conselhos de Deus), ser batizado com o Espírito Santo, ser usado com os dons, fazer vountariado na igreja, a discipular outros, ser testemunha de Jesus, ser bom empregado, ter o fruto do Espírito presente na sua vida, ter maior satisfação com a vida como um todo... etc.

O estudo mostra que muitas pessoas têm acesso à Bíblia, mas que só algumas realmente têm um envolvimento comprometido com a Bíblia. O impacto da Bíblia na transformação dos relacionamentos e escolhas é proporcional a esse envolvimento.

Depois deste estudo, as Assembleias de Deus no EUA não ficaram paradas. Criaram uma série de recursos tendo como ponto de partida o episódio do Caminho de Emaús (Lucas 24:13 a 35). Esses recursos têm um processo de três passos: escutar (através da Bíblia, ajudar as pessoas a desenvolver um conhecimento prático das Escrituras e uma visão da vida baseada na Bíblia); aprender (ajudar as pessoas a desenvolver aprofundadamente uma compreensão das doutrinas fundamentais e de como elas têm a sua raiz nas Escrituras); viver (auxiliar as pessoas a saber ler e aplicar as Escrituras nas suas circunstâncias pessoais).

Como o fizeram? Criaram um currículo para crianças, recursos para pequenos grupos de jovens e adultos, e ferramentas de estudo, tudo de acordo com a teologia pentecostal, em parceria com o software de estudo bíblico LOGOS, tudo online, distribuído através de uma aplicação com subscrição mensal individual ou de acordo com a dimensão da igreja local.

Com a chegada da Pandemia, e o projeto já em curso, esta tem sido uma ferramenta que está disponível e em atualização pela equipa de irmãos contratados para ajudar nas várias áreas deste ministério (pedagógicas, teológicas e técnicas). É um investimento necessário, útil e contextualizado. Um bom exemplo que mantém os princípios de que falámos.

 

CONCLUSÃO

Seja qual for o nome ou sistema, na igreja:

– Não pode faltar o estudo sistemático da Palavra de Deus, de acordo com as diferentes faixas etárias;

- É importante ter compaixão. Pensar que o que estamos a fazer tem a ver com vidas, transformadas pela Palavra de Deus, através da qual o Espírito Santo opera;

- Precisamos adaptar-nos e contextualizar-nos, sem perder os dois princípios de que falámos antes.

 

O desafio é gigante, tal como o potencial do Ensino Sistemático Bíblico por idades. Estrutura, motivação e contextualização. Que Deus levante muitos “Robert Raikes” com visão, paixão e perseverança para alcançar biblicamente a nova geração, num mundo em constante mudança.

 

Ana Ramalho Rosa

 

1 Revista dedicada à liderança das Assembleias de Deus dos Estados Unidos; 2 HORRELL J. Scott A essência da igreja São Paulo: Hagnos, 2004, pág. 124

 

Fontes: www.escoladominical.com.br; Revista Voz Missionária. Ano 75, agosto-setembro de 2004; www.ag.org; bibleengagementproject.com; www.infed.org; pesquisa pessoal do pastor José Manuel de Sousa mencionada em BAPTISTA Carlos, Escola Dominical I, Foz do Arelho: IBAD, 2006, Obra não publicada.


in Novas de Alegria, outubro 2021   

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