Lamento terra a terra

The Return of the Prodigal Son - Rembrandt

Resumi-me aos dias cinzento, num sobressalto atroz expectável, mas ilusoriamente inesperado. Pela minha vontade deixei o que tinha e rendi-me ao destino irrefutável que criei para mim mesmo. Tropecei no meu abismo e caí, com a cara na terra enlameada, sem nenhuma forma de escapar. Porque permiti-me viver na rebeldia dos dias, e deixei que a minha liberdade ilusória deitasse fora tudo o que tinha. E tinha tudo.

Deixei-me levar pela dança do prazer pelo prazer, virando as costas, a cabeça e o coração aos dias de barriga cheia, cama e roupa lavada que troquei pelo meu ego insaciável. Uma troca em que perdi tudo o que tinha e o que ganhei. 

O meu rumo alucinado trouxe-me aqui: as minhas loucuras levaram-me ao charco e à companhia de suínos ensurdecedores e bolotas de acusação que me ferem a consciência e me lembram da minha condição maltrapilha e acidamente decomposta pelo meu “eu”.

Não tenho nada para dar – mas carrego tudo no meu coração ferido, alterado, enlouquecido. A loucura do que vivi nesta minha variante de fúria infeliz, a pensar que encontraria a verdadeira felicidade alheia aos recantos sossegados em que me acomodava noutros tempos. O que marca o meu dia é a vergonha, a frustração o medo, o orgulho ferido, e a agonia do resultado das escolhas míopes que fiz. É esta a soma ignóbil que depositarei aos pés de quem me quiser quando voltar.

E voltei. Fiz-me ao caminho a tremer de medo, enquanto imaginava a vergonha que passaria entre os meu pares de antigamente. De tudo o que levei resto apenas eu – não tenho nada mais, nem sonhos, nem esperança, nem roupa lavada. Dos amigos que tinha quando era o maior do reino na independência, resta a solidão – só. 

É assim que me apresento. É assim que sigo. A decisão é pagar. Pagar pelo que voou porque não há como retornar ao tempo em que vivia na graça das graças. É baixar a cabeça nos sarcasmos dos que ficaram, e suportar a afronta dos que me trouxeram ao mundo. Bati no fundo, parti a louça toda, e agora o que trago são os cacos do meu coração. 

“E ainda vinha longe, seu pai, vendo-o aproximar-se, e cheio de terna compaixão, correu ao seu encontro, abraçando-o e beijando-o. O filho disse-lhe: 'Pai, pequei contra o céu e perante ti, e já nem mereço ser chamado teu filho.' Mas o pai disse aos criados: 'Depressa, tragam o manto melhor que houver em casa e vistam-lho; e ponham-lhe um anel no dedo e calçado novo! Matem o bezerro que estamos a engordar; porque vai haver grande festa, pois este meu filho estava como morto e voltou à vida; estava perdido e tornou a ser achado.' Com isto começou o banquete.” (Lucas 15:20-21, OL)

Ana R. Rosa

in Novas de Alegria, abril 2022

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