As desculpas para a interrupção da vida


Ou como matar sem pesos na consciência

Somos peritos em inventar desculpas. É assim desde o princípio. Quando Deus chamou por Adão no jardim, após o primeiro ato de desobediência, este apareceu e logo que confrontado, largou as culpas para 'a mulher que Tu me deste'. E Eva, perante a questão, passou a 'batata quente' para a serpente... e esta, em consequência, ficou literalmente de rastos.

Não havia nada que justificasse aquela desobediência. Desculpas, sim, havia muitas. Curiosidade, beleza à vista, etc. Aqui e agora, ainda temos o mesmo vírus, uma pandemia que não precisa de declarações oficiais da ONU. Racionalizamos as nossas misérias com desculpas e argumentamos um utilitarismo escapista conforme nos apetece.


"NÃO ERA ISTO QUE TINHA PLANEADO"
Este é um argumento aceitável quando se fala de trocar dias de férias porque a entidade patronal assim o exige. Mas o mesmo argumento pode ser usado para interromper a vida de um ser que ainda não viu a luz do Sol (porque matar é uma palavra muito forte).

"MAIS VALE ACABAR COM ISSO DE VEZ"
Esta desculpa é válida quando falamos de arrancar um dente infetado até à raiz, por exemplo. Mas também pode ser usada para 'justificar' o 'oferecer' a possibilidade de alguém escolher ter 'uma morte digna' como se a dignidade de uma morte natural não existisse, nem os cuidados paliativos fossem uma via para a dignificação do final de vida de pessoas que valem tanto como eu, mesmo que não contribuam financeiramente para o todo. Não estou a relegar o sofrimento para a frieza de um discurso bonito, mas a verdade e os factos que conhecemos dos países em que se banalizou a eutanásia 'ativa' são horrorosos e intragáveis. Não estamos a falar de 'desligar a máquina' para que as coisas sigam o seu curso natural, mas de puxar o gatilho com medicação - e, agora, à distância de um comprimido. Como sempre, maquilhamos as terminologias para aligeirarmos a consciência... o ato de abreviar a vida de uma pessoa, ou a gravidez interrompida são exemplos disso. Sai-nos do bolso cuidar de quem deu tanto na vida (especialmente ao Estado) .... então vamos escutando frases bonitas sem saber bem o que temos em frente, muitas desculpas que resultam em poupança de dinheiro para o todo, com uma capa de suposta boa vontade e misericórdia.

"O QUE ELE(A) FEZ NÃO TEM DESCULPA"
Pode-se dizer isto num comentário aceso, na discussão acerca de um jogo de futebol. Tudo bem, desde que com respeito e moderação. Mas há quem use este mesmo argumento para trazer à baila novamente a pena de morte. E é verdade que há crimes contra a Humanidade, contra crianças, etc., que são chocantes, atrozes, horrorosos. É preciso haver justiça, mas linchamentos?! Sim, eles andam aí... para já nas redes sociais, mas o assunto 'real' está em cima da mesa.

Não me julguem inocente ou mais moralista do que os outros. Não sou, mas não posso arranjar desculpas. Não digo que o sofrimento alheio é fácil de suportar. Já vivi bem perto de situações em que hoje muitos diriam, perante uma doença prolongada e sem um 'final feliz': "uma 'morte digna' e está tudo resolvido". E males que mereciam, na boca da justiça popular, 'acabar com eles' - também não me são desconhecidos. Há coisas discutíveis em que não temos preto ou branco, mas cinzento. No entanto, como é possível sermos tão rápidos a classificar preto ou branco, quando a ideia é nos livramos daquilo que nos pesa ou pensamos que pesa aos outros?

A GRANDE QUESTÃO
Observando a sociedade em que vivemos, encontramos alguns aspetos que são o pano de fundo para esta diluição ética: como, teoricamente, viemos do nada e vamos para o nada, o melhor é vivermos ao máximo o aqui e agora, independentemente daquilo que os outros pensem. E como não há nenhuma autoridade acima de nós, porque Deus não existe, ou se existe não está presente, importa o que me dá jeito, me dá prazer e me é útil. Como cristã, como seguidora de Jesus, dou por mim tantas vezes a falhar naquilo que deveria ser e fazer! Estou no processo de aprender, dia a dia. Aprender a diminuir para que Ele possa crescer, a negar-me a mim mesma (esta parte dói!), a identificar-me com Ele, e a segui-Lo. A verdade é que, por mais que custe ao meu ego, preciso reconhecer o que Ele, de facto, deseja de mim.

Uma das coisas que Ele pede de nós para com a sociedade que nos rodeia, tem a ver com o Seu alvo: a redenção da Humanidade. Jesus quer usar-nos como veículos de reconciliação (2 Coríntios 5:11-19). Ele disse, preto no branco, que devemos amar os nossos inimigos e orar pelos que nos maltratam, que quando no nosso coração deixamos que o ódio contra outra pessoa ganhe espaço é como se o tivéssemos a matar (leia o Sermão do Monte em Mateus 5 a 7). Ele veio para dar vida, e vida com abundância (João 10:10). Mandou-nos levar as boas notícias do Evangelho ao mundo inteiro - porque Ele é o único que pode mudar a vida do pior criminoso (Marcos 16:15; Mateus 28:18-20; 2 Coríntios 5:17). Ele veio para dar uma nova oportunidade aos excluídos e desprezados (Lucas 5:30-32; Mateus 11:28-30). Ele prometeu que cuida de nós. A Sua Palavra está cheia de princípios onde o cuidado pelos mais necessitados é presente (Êxodo 22:22-24; Isaías 1:17; Zacarias 7:9-10; Tiago 1:27, 2:14-17; Filipenses 2:4; 1 João 3:17). Já para não falar do valor da vida humana, incluindo quando ainda está em gestação (Génesis 9:5-6; Êxodo 20:13, 21:22-23; Levítico 19:9-37, 24:17; Salmo 8:4-8; Mateus 6:25-34).

Jesus é a nossa Esperança. Aliás, Ele é a única Esperança. É esta Esperança que o mundo precisa conhecer e experimentar. Sim, parece loucura alguém dar a vida por aqueles que O traíram. Alguém levar sobre si todos os crimes e pecados dos outros. Parece mentira... mas é verdade. E para a vivermos e termos não precisamos arranjar desculpas. Basta crer Nele e querer que Ele seja o Rei de amor, perfeito e justo, da nossa vida.

Precisamos trocar o peso da vida alheia pela celebração e suporte dessa vida. E isso só se consegue se virmos a vida do outro como Jesus a vê. “Deus amou tanto o mundo que deu o seu único Filho, para que todo aquele que nele crê não se perca, mas tenha a vida eterna.” (João 3:16, OL)

Ana Ramalho Rosa


in Novas de Alegria, maio 2020

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