“Até os campeões choram”

 


Quando em final de outubro de 2021, um jornal português trouxe a público a luta que Ricardinho (jogador de futsal e um dos melhores de sempre na modalidade) sofria, fê-lo com duas palavras que não me são estranhas: rebentado e psicologicamente.

Para quem não acompanha a modalidade, pode soar a qualquer outro atleta com problemas de saúde, neste caso, mental. Mas não é assim tão simples. É como um delicioso bolo de camadas com chocolate, frutos vermelhos, fofo, mas ao mesmo tempo tenso para dar gosto, com um perfume doce e um aspeto sem igual… Ricardinho é “o 10” da equipa, capitão de equipa, o jogador com mais destaque em termos históricos. Ganhou praticamente tudo, liderou, ultrapassou metas, elevou fasquias, tornou-se um nome que é impossível esquecer nesta modalidade. Para quem não conheça a modalidade e a pessoa, digamos que é o Cristiano Ronaldo do futsal. 

A cereja carregada de ironia, no topo do bolo é esta: é homem. E nós homens, não somos muito dados a expor o lado sentimental ou a fraqueza. Sofremos, mas em silêncio. Choramos, mas em secreto. Quanto mais falar sobre dificuldades ou questões de saúde (sobretudo do foro íntimo). Crescemos com referências televisivas do homem imbatível, herói das séries e filmes, que ultrapassa todas as dificuldades e no fim ficam com a princesa, o prémio e a fama. Não é estigma social, é uma realidade. Dos homens o que se espera é que sejam os pilares, colunas, vigas, lajes e tudo o mais do que é construção da sociedade e da família.

Costumo dizer que fujo um (bom) bocado ao “normal”. A minha preferência não são os heróis, são os anti-heróis, aqueles que não sendo os típicos heróis e até parecendo dispensáveis, acabam por ser importantes e tendem a ser o oposto do retrato do herói. Sou alguém com um problema de saúde que é de cariz biológico. E que é tratado ao nível da saúde mental. Não tenho problemas ou dramas em admiti-lo. Já tive. Não queria o rótulo de “maluquinho”, do “coitadinho”, do “tem aquele tamanho, mas chora”. Gosto mais de chorar de alegria do que de dor. Qualquer um gosta. Mas prefiro chorar como José ou Jesus, do que não o fazer e acumular até ao ponto da exaustão mental total. 

Será que sou menos homem que outros? Afinal, sou seguido por profissionais de saúde, faço medicação, tenho de seguir uma rotina de higiene mental e que envolve descanso, boa alimentação, minimização de exposição a ecrãs (o que tendo em conta que trabalho como informático, faço gestão de redes sociais, estudo e afins, é extremamente difícil) e balanço no meu esforço emocional… Não. A faculdade de sabermos gerir os nossos limites, percebermos que precisamos de ajuda, procurar essa ajuda e aceitá-la, não nos torna menos homens. Não me tornou menos homem. Mas tornou-me mais compassivo para com a dor dos outros. Seja por questões semelhantes à minha, seja por questões diferentes. Se algo, tornou-me mais humano, à imagem e semelhança de Deus. Alguém mais preocupado com os relacionamentos e com o cuidado. 

Quantos Ricardinhos existem por aí? Anónimos, sem tanto apoio, com medo de admitirem a fraqueza que sentem diariamente? 

Porque é que nós, homens, vivemos com o estigma do “homem de barba rija”, que não precisa de ajuda de ninguém? Sobretudo sendo cristãos e parte da Igreja?  O medo de sermos minimizados, o pensamento de que vamos ser menos masculinos ou a ideia de que seremos ridicularizados por sermos doentes mentais… tudo pensamentos que ocorrem e que oferecem resistência ao que Deus pode fazer.

No meu percurso, aprendi que muitas vezes Deus nos livra das tempestades, noutras livra-nos na tempestade. Esquisito, não é? Pensemos em Jonas, que no ventre do peixe confessa que do Senhor é que nos chega a salvação (Jonas 2:9). Ou então anuncia que nos ira dar a ajuda ou restauração que necessitamos (Malaquias 4:2). 

Pessoalmente não me considero um campeão. O Ricardinho, sim. Um fenómeno do futebol. Um autêntico ícone do desporto. Um verdadeiro artista da bola. Eu já nem tenho bem a certeza de conseguir jogar futebol fora da consola ou do computador…, mas não deixo de saber que numa coisa, como o Ricardinho, eu e muitas mais pessoas, somos campeões. Vivemos a luta com as depressões, esgotamentos e outras doenças que nos desgastam o cérebro, lutando dia-a-dia, procurando não desanimar, sabendo que Deus é o nosso socorro (Salmo 119:41, Isaías 12:2, Lamentações 3:26).

Tenho conhecido pessoas com estas lutas. Umas mais profundas, outras menos. Mas sei que não é fácil vivê-las. Por isso, adotei dois lemas das forças-armadas norte-americanas: nemo resideo e de opresso liber. Traduzidas rapidamente por “não deixar ninguém para trás” e “libertando os oprimidos”. Isto é o que Jesus nos comissionou (Lucas 7:22; 10) para fazer, com as nossas forças e fraquezas, fazendo questão de nos lembrar que é na nossa fraqueza que o Seu poder se demonstra ainda mais (2ª Coríntios 12:9). 

Podem perguntar-me: “mas com essa fragilidade, como é que consegues”? A minha resposta é simples, não o faço com a minha força, mas com a força e a alegria de Deus (Neemias 8:1-12, Efésios 6:10). Com gente que me ama, seja família de sangue ou espiritual (Provérbios 18:24), sendo acompanhado clinicamente, assumindo sem preconceito as minhas limitações e procurando viver de modo regrado. 

E o que faço em dias, semanas ou meses maus? Mais uma regra militar (logo eu que não pude ir cumprir serviço militar por “excesso de competências académicas”): Improvise, Adapt, Overcome. Improvisar, adaptar e superar. Improvisar de modo a ganhar ânimo, adaptar-me às circunstâncias para não me perder e superar a dificuldade sabendo que sou uma ovelha num mundo de lobos, mas que sou guardado pelo Leão da Tribo de Judá.

Ricardo Rosa

in Novas de Alegria, junho 2022

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